A aprovação da obrigatoriedade do curso de Filosofia no Ensino Médio resulta de uma longa discussão em torno da importância (ou não) dessa matéria na vida estudantil de um adolescente. Filosofia no Ensino Médio? Qual é o sentido dessa disciplina que não se enquadra nem nas Ciências exatas, nem nas Ciências Sociais, que não é uma arte, tampouco uma técnica e muito menos uma religião? Afinal, o que é a Filosofia e qual o seu papel no Ensino Médio?
Ora, a Filosofia surge de uma exigência do próprio pensamento. Por exemplo, quando estudamos Física, Química ou Biologia, necessitamos saber o que são essas formas de pensamento que conseguem um grau de objetividade e precisão impressionantes para o senso comum. Como funciona a Ciência? Como ela pensa? Por que a consideramos a “guardiã da verdade”? O que é a verdade? Como a distinguimos de uma mera opinião ou de uma estranha magia? Qual é seu alcance e quais são seus limites? Quais são seus perigos e suas conseqüências na vida cotidiana das pessoas? Todas essas questões, consideradas epistemológicas, surgem inevitavelmente em nossa cultura ocidental, que aposta todas as fichas na Ciência, que investe dinheiro e libido em laboratórios, pesquisas e cientistas.
Mesmo o Brasil, cujo investimento é comparativamente menor em relação a países desenvolvidos, não escapa da visão cientificista. Assim, um aluno brasileiro desde cedo se vê bombardeado por aulas de Matemática, Física, Química, Biologia, sem entender muito bem o sentido dessas disciplinas em suas vidas.
A dimensão ética
Mas não são apenas as questões epistemológicas que instigam o pensamento filosófico. Há também problemas de ordem ética. Vivemos num mundo capitalista, moderno, industrial, tecnológico, cujas mudanças ocorrem a uma velocidade assustadora. Valores que ontem eram indestrutíveis são varridos rapidamente no processo histórico. Família nuclear, estabilidade no emprego, sexualidade bem definida, uma certa tranqüilidade social, para dar alguns exemplos, são formações que foram reavaliadas na nova configuração histórica. Outros vínculos sociais foram produzidos, o emprego tornou-se precário (quando não inexistente), novas sexualidades emergiram, a violência se alastrou na cidade.
Tendo em vista este contexto social tumultuado, a depressão, a angústia, o medo e até mesmo o pânico tomaram conta da subjetividade moderna. Como resolver ou minimizar esses sintomas? Como sair do mal-estar enraizado na civilização? A busca imediata da solução pelo uso de medicamentos antidepressivos e de drogas não enfrenta de forma corajosa a situação, que exige um trabalho mais elaborado de pensamento. Mas como pensar essa subjetividade atormentada se não temos o instrumental adequado, ou seja, os conceitos precisos para nosauxiliar a viver? Eis a tarefa da Filosofia: oferecer ferramentas conceituais para simbolizar a vida moderna e suas dificuldades afetivas, sexuais, existenciais. Que outra disciplina senão ela poderia dispor desses instrumentos?
Perguntar sobre a utilidade das coisas é uma mania de nossa cultura. No caso em questão a resposta pode surpreender
Fique tranqüilo porque tenho a intenção de responder o mais honestamente possível a essa questão. Para tanto, porém, preciso de sua paciência. É que, para dizer para que serve a filosofia, precisamos usar a filosofia, e sem a tal paciência isso dificilmente ocorre. Queria, antes, que você pensasse comigo a respeito da seguinte questão: o que é uma coisa quando ela serve para algo? Um martelo é um instrumento usado na fixação de pregos. Uma auto-estrada é um meio pelo qual pessoas e mercadorias podem se locomover numa cidade ou entre cidades.Quando, portanto, perguntamos para que serve a filosofia, temos uma série de noções guardadas em silêncio a respeito dela e do mundo. Acontece que, se essas noções são corretas na maioria dos casos, talvez não sejam no que se refere à filosofia. Talvez exatamente por isso é que não encontramos com facilidade a resposta certa para a bendita pergunta. E que noções são essas?Quando perguntamos para que serve a filosofia supomos que ela seja um instrumento, como um martelo, ou que seja um meio, como a auto-estrada. Sabemos que sem o martelo o marceneiro pouco pode fazer em seu trabalho. Do mesmo modo, sem auto-estradas a cidade se tornaria um caos. Dizemos, então, que o martelo é importante para o serviço de marcenaria. Que a auto-estrada é importante para a ordem urbana e o progresso do país. Guardamos em silêncio, portanto, a idéia de que a importância de algo se mede por sua utilidade. Por isso não perguntamos, simplesmente, qual a importância da filosofia. Cortamos o caminho e ganhamos tempo indagando logo para que serve, qual sua utilidade. O erro que há nisso é pensar que a filosofia possa mesmo servir...Então não serve? Vamos com calma. As perguntas que fazemos nunca nascem do nada, não estão prontas desde toda a eternidade. Por isso, jamais são tão inocentes quanto, por vezes, parecem. Perguntas são modos de falar. Falar é um modo de relacionar-se com o mundo. É porque vivemos desta e não de outra maneira que fazemos essa e não outra pergunta. Poderíamos até contar a história de todos os povos a partir do recenseamento das questões que eles se colocaram. A história, decerto, é o conjunto das providências tomadas pelos homens para atender às suas necessidades. Mas a história é também o conjunto das invenções de novas necessidades. Houve um momento em que as pedras já não mais satisfaziam todo o interesse de quem escrevia, e então alguém se perguntou se não seria possível escrever sobre outras superfícies. Essa pergunta, note, não teria cabimento se já não estivéssemos dentro de uma forma de vida da qual fazia parte o ofício de escrever. Assim, vale a pena nos indagar sobre que forma de vida é essa nossa que nos faz julgar necessária a pergunta “para que serve a filosofia?”
PARA QUE SERVE A FILOSOFIA?
Cultura utilitária.
Seria o caso de perguntar por que, diante de algo que não conhecemos ou conhecemos pouco, pensamos que saberíamos mais se soubéssemos para que serve esta coisa? Se não estou enganado, isso ocorre porque vivemos numa civilização na qual o conhecimento é produzido de modo a privilegiar sua utilização.
Se na física, por exemplo, os conhecimentos são produzidos em condições que, de uma maneira ou de outra, acabam tendo uma utilidade prática, então é lícito questionar para que servem os conhecimentos produzidos pela filosofia – se é que se pode chamar de conhecimento o que ela produz! Mas será que pensamos desse modo de uma hora para outra? Qual o processo histórico que nos ensina que é assim que devemos pensar?O processo histórico que nos deixou na situação de olhar para algo sempre em vista de saber sua utilidade foi produzido sob certa noção de racionalidade. A racionalidade é o modo como traçamos a relação entre nossa inteligência e o mundo. Julgamos que seríamos tanto mais inteligentes quanto mais dominássemos as forças da natureza. Sob esse pretexto, esse empreendimento se tornou, ao longo do tempo, a forma mais cruel de depredação. Pensar era, nesse contexto, tomar providências para tirar o máximo de proveito dos recursos naturais, sem a menor preocupação em sarar as feridas que essa extração provocava no meio ambiente. Uma delas é o superaquecimento da Terra, uma ameaça que põe em risco o futuro da humanidade. Mas não é só. Como alguém já disse, a primeira coisa que o homem tocou para dominar foi a mulher. Ou seja, seu semelhante. E quando pensamos que a busca da dominação do meio externo exacerba-se na dominação da natureza interna do homem (sua alma), logo começamos a entender eventos comuns em nossos dias, como a violência. Eventos que atrapalham a possibilidade de uma forma de vida passível de ser chamada de feliz. A felicidade ultrapassa toda noção de utilidade porque é um bem em si: ninguém quer ser feliz para outra coisa, ser feliz não serve para alcançar algo mais além. Mas a cultura utilitária de nossa civilização deturpa a idéia de felicidade, e nos faz pensar que seremos tanto maisfelizes quanto mais soubermos utilizar as pessoas, como o primeiro homem utilizou a mulher, e os filhos e os mais fracos, para destruir a natureza e a nós mesmos depois.
Exercício de liberdade
É, pois, porque vivemos numa civilização das vantagens (sobre a infelicidade alheia) que somos levados a perguntar para que serve isso e aquilo e também a filosofia. Jogaremos fora, então, a pergunta? Diremos, então, que a filosofia tem a ver, como tem, com certo exercício de liberdade? Que a filosofia, toda vez que serve, deixa de ser filosofia, porque abandona sua liberdade? Que, neste sentido, a filosofia não serve a ninguém nem a nada? Diremos que a filosofia é uma forma de felicidade? É possível. Mas o leitor que chegou até aqui está longe de ser tolo, e pode perfeitamente retrucar: não perguntei a quem serve a filosofia, ou a quê, mas o que posso fazer com ela e, se Chanson d’Amour, de Giorgio de Chirico: não posso fazer nada com ela, o que ela pode fazer comigo. Digamos, então, que a filosofia, como exercício de liberdade, pode nos ajudar a nos livrar de saberes reconcebidos, aceitos sem questionamentos, e que, exatamente por não terem sido discutidos, impedem a possibilidade de nos relacionarmos de uma forma diferente com o mundo.Assim concebida, a filosofia não é bem um saber que possamos utilizar aqui ou ali. É, isto sim, um fazer (uma forma de pensar) que nos ajuda a escolher que saber podemos (para o bem ou para o mal) utilizar, seja em que circunstância for. Se, ainda assim, você quiser pensar na filosofia como um instrumento, digamos que ela seria uma espécie de “desconfiômetro”, uma peça de nossa inteligência utilizada para não engolirmos a primeira certeza que nos oferecerem como sendo uma verdade indiscutível. Serve, por exemplo, para nos estimular a suspeitar de que a importância de algo está em sua utilidade, e assim descobrirmos que é porque não é útil que a filosofia é importante. Quando aprendemos a pensar para além do modo como nos ensinaram que seria o certo, quando duvidamos de nossas certezas absolutas, quando não abrimos mão de nossa liberdade e quando indagamos se isso que chamamos “nossa liberdade” é mesmo uma liberdade pode ficar em alerta porque estamos pondo para funcionar o desconfiômetro da filosofia. Estamos começando a filosofar.
Abrahão Costa Andrade, poeta, ensaísta, professor de filosofia da UFRN, autor de Ricoeur e a Formação do Sujeito (Ed. PUC-RS, 2000), Angústia da Concisão, Ensaios de Filosofia e Crítica Literária (Escrituras, 2003), entre outros livros.
Na sua opinião, qual a contribuição do ensino de Filosofia para a juventude? De que forma a Filosofia ajuda a formar sujeitos pensantes e críticos frente a realidade?